Diário da EPCAR 1970 – 4ª Parte
Química, volume 2
O ritmo de estudo na Escola era, para alguns alunos, enlouquecedor, e não emprego aqui a expressão como simples metáfora.
As aulas de Química transcorriam, em geral, numa tranquilidade sepulcral, graças à simpatia e à afabilidade de nosso professor, o grande Ayres Pinto. No entanto, certo dia, como uma violenta tempestade não anunciada, nosso colega Bezerra explodiu em ensandecidas gargalhadas.
Os livros de Química do Vitor Nehmi possuíam uma quantidade invejável de boas qualidades, mas, a comicidade de forma alguma figurava entre elas. Ainda assim, o Bezerra gargalhava como um possuído diante do volume sobre Atomística, que também nada tem de cômico. E, de repente, as gargalhadas convulsas transformaram-se em um choro incontrolável.
Ayres Pinto, que durante a explosão dos risos bezerreanos aproximou-se do colega, ao notar sua brusca mudança de humor, afastou-se imediatamente, assim como se repelem as cargas elétricas de mesmo sinal, num repelão (fenômeno conhecido como cagaço) inversamente proporcional ao quadrado da distância entre ele e o Bezerra.
Então, ondas intermitentes de gargalhadas contagiantes e choro assustador assolaram e sacudiram nosso colega. Ayres Pinto, a uma distância segura, bradava instruções: levem o colega à enfermaria. Senhores, rápido.
Lembro-me do Bezerra, finalmente desmaiado, sendo arrastado por dois corajosos colegas, deixando no piso da sala os riscos negros paralelos de seus borzeguins engraxados.
Química: laboratório
Durante minha vida acadêmica frequentei algumas instituições, mas creio que em nenhuma delas algo me impressionou tanto quanto a primeira visão do laboratório de Química da Escola. E devo reconhecer que aquilo despertou a genuína vocação científica em alguns de nós.
Nos primeiros dias de aula, o inesquecível Ayres Pinto transitava por entre as bancadas com seu jaleco imaculado, despejando instruções e, sobretudo, advertências. Mal sabia ele do profundo espírito investigativo de que eram dotados alguns de seus discípulos.
Com a mesma entonação com que adentrava nossa sala de aula repetindo “Turma F, à vontade, podem sentar-se”, como um Marechal de Campo em sua derradeira revista às tropas antes de um combate colossal, ele agitava seu jaleco entre nós, ensinando-nos: “Senhores, não aproximem o frasco da substância A do frasco da substância B destampados. Isso provocará fumaça”.
Celestino, um verdadeiro Lavoisier, imediatamente destampava os frascos referidos e, qual um sacerdote em um culto pagão, erguia-os e os aproximava, produzindo um efeito nevoeiro jamais igualado pelo cinema americano.
O incansável Ayres Pinto em sua jornada pelas bancadas ensinava: “Senhores, o fósforo branco tem de permanecer imerso na solução aquosa ou espontaneamente entrará em combustão”. Celestino, sem mesmo considerar o risco de perder alguns dedos da mão, dir-se-ia transtornado pela implacável e nobre curiosidade científica, um autêntico Gay-Lussac barbacenense, removia a diminuta pedra de seu recipiente, depositava-a em um bolso traseiro do colega mais próximo e entusiasmava-se com o desespero do mesmo ao perceber os fundilhos de sua calça arderem em chamas.
(publicado no e-Groups em 29-05-2014)