Diário da Epcar 1970 – 3a. parte
Ao ar livre
Hora do almoço: passagem de serviço, hasteamento da bandeira.
Garbosamente perfilam-se as duas equipes de serviço próximas ao palanque das autoridades. Um sol inclemente, uma fome terrível e a certeza de que nós, bichos, iríamos esperar uma eternidade para desfrutar das iguarias do afamado restaurante da Escola.
“Pa…sss…so o serviço de aluno de dia ao aluno 68/xxx”, ecoou pelo Pátio da Bandeira a poderosa voz do aluno 68/yyy.
Só pela continência com que o aluno 68/xxx preparou sua réplica, percebemos que aquilo tendia a um duelo de impostações vocais. Os nossos estômagos roncando e ainda faltava o desfile do corpo de alunos. “Re..ccce..bo o serrr..vi..ço de aluno de dia!”.
À testa da sexta esquadrilha, completamente envolto na emoção da atmosfera, Celestino entre dentes: “Fooo..da-se!”.
No rancho
Não me recordo de suas feições, mas lembro-me de sua pachorra. Um monge tibetano naquela azáfama diária do refeitório ao meio-dia, com umas oitocentas pessoas para lá e para cá, com bandejas abarrotadas nas mãos, comida chegando, recipientes vazios saindo, não teria a tranqüilidade do chefe do rancho.
Um dia, ao degustar uma salada de alface e tomate completamente natural, como viemos a descobrir, um colega foi surpreendido pela presença de uma aranha entre as tenras folhas que em seu prato se encontravam.
Irado, levantou-se de nossa mesa e pôs-se a procurar a autoridade máxima do refeitório. Outro colega tentou dissuadi-lo, apresentando os argumentos de sempre, “senta aí, rapaz, não vai adiantar nada”. E o outro, olhando para um lado, depois para outro, dizendo, “não vai? Você vai ver”.
Finalmente, o chefe foi visto andando na maior tranquilidade. O colega com o prato na mão disparou atrás dele e o alcançou.
“Chefe, isso é uma aranha!”.
O Dalai Lama da Escola, utilizando apenas um polegar e um indicador, lentamente recolheu o (ia dizer bicho,mas bichos éramos nós) artrópode dentre as folhas de alfaces. Contemplou-o longamente e, ainda me emociono ao recordar suas sábias palavras: “Está morta”.
Jogou a aranha fora e sumiu.
(publicado no e-Groups em 28-05-2014)