Diário da EPCAR 1970 – 1ª Parte
Véspera de encontro em SP. Eu que sou bicho em encontros, suo e me cago, e isso não é um bolero! Só espero que não tenha trote. Já me basta a lembrança do Moreira correndo pelo alojamento, balançando os braços e gritando de um modo estranho: eu sou uma borboleta, eu sou uma borboleta. Levei um susto: em Niterói, ele não era assim.
Bom. Algum dia me pediram para escrever para o encontro de 40 anos. Pensei em um diário e comecei. Como sou devagar, consegui o correspondente ao ano de 1970, isso antes do encontro dos 45 anos.
Ficou meio longo, mas mandarei em doses homeopáticas. Faço muitas referências à turma F, 1970, que foi a que me coube, mas é como alguém me falou sobre as suecas: já viu uma, já viu todas.
Comecemos por aquela semana inesquecível de adaptação.
Instrução militar
A coisa não começou bem.
No primeiro dia da primeira semana, fiz o lanche da manhã ao lado de um colega cuja voracidade inibiu meu apetite. Enquanto eu comi um pão francês com uma caneca de café com leite, o camarada tomou dois pratos de mingau de chocolate ( que diziam conter substância que hoje seria desnecessária ao fim a que se destinava, qual seja, deixar a região baixa, muito baixa, da garotada menos entusiasmada), comeu uns três pãezinhos, bebeu umas duas canecas de café com leite, e deixou a mesa comendo uma banana. Com o sotaque característico das pessoas nascidas na internacionalmente conhecida cidade de Bicas (MG), fez um comentário mais que óbvio: “Gosssstei do rancho!”.
Aí veio a pauleira.
A turma F ficou sob o comando de um sargento cujo nome já adiantava algo sobre sua personalidade, Simeão. Simeão lembra Abraão, que gostava de andar pra cacete e pelo deserto. Além disso, ele era algo como uma mistura do tipo físico do Wagner com a voz de comando do Marinho (que seria o meu ator para fazer a voz de Deus num filme bíblico).
O Sgt. Simeão nos fez correr, saltar, cair no chão, rolar, tirar os sapatos, colocar os sapatos, fazer flexão de braços, abdominais, marchar. Coisas de fazer o Mike Tyson pedir penico. O elemento de Bicas, com o estômago forrado como estava, passou mal. Passar mal é um eufemismo. Imagine o amigo as cataratas do Iguaçu, aquela massa de água colossal despencando das alturas sobre um rio infinito: parecia um mar, mas era o Omar (desculpem, mas não resisti ao trocadilho. Desculpem) disposto a inundar o pátio da bandeira com seu suco gástrico. Simeão mandou que recolhêssemos o coitado à enfermaria. Só que o cretino do coitado pesava para cacete, de modo que quatro de nós precisamos gastar nossas reservas de forças para arrastar o biquenense vomitante pelo pátio até a enfermaria.
Seguindo a máxima do tenente Batista, o indivíduo vê as barbas do vizinho ardendo, põe as suas de molho, eu que já comia mal à beça, por via das dúvidas, passei a me alimentar como um faquir, daí o apelido de fininho.
E aí vieram as ordens unidas.
Em tese, todos nós sabíamos qual era o lado direito e qual o esquerdo. Marchando, sob o comando do sargento Simeão, a coisa era outra. Direita volver! Pum! O colega à direita possuía dois lados direitos e dava-se a colisão. “Sai pra lá, cara”. Meia volta volver era sacanagem. Se eu conseguisse executar tal manobra logo na primeira semana, teria ido para o Bolshoi fazer piruetas qual um Nureiev.
E por falar nisso, ainda tínhamos de marchar com música, com cadência. Esquerda, direita, um, dois, moleza, cara. Mas aí vinha a porra do meia volta volver, direita volver, esquerda volver. E o alto. Chegou o dia em que o sargento Simeão, que já devia estar desesperado, deu um “alto” tão baixo, que a testa da turma F seguiu pelo pátio enquanto nós, os demais, parados, contemplávamos a trinca unida se afastando (se a memória não me falha, lá estavam Filter, Homero e Celestino, que tinha um jeito de marchar meio black, meio James Brown, sex machine, brother!). Ainda me lembro do Filter impecável no esquerda, direita, um, dois, antes do novo ALTO do Simeão, nos olhar e comentar em gauchês “bah!”.
E chegaram os mosquetões. Lembram disso? E das baionetas? Apresentar armas, ombro armas, esquerda, direita, um, dois, direita volver, aahhhh, sai pra lá, cara!
Mas, se na natureza tudo se transforma, o sargento Simeão conseguiu mesmo organizar aquele bando de bichos desajeitados num conjunto harmonioso.
(publicado no e-Groups em 23-05-2014)