A Arte de Dormir (na Epcar)

Não consigo acreditar que houve uma época em que eu acordava quase diariamente por volta das 5:30. Aliás, não sei como sobrevivemos a anos inteiros com oito aulas diárias, mais umas quatro formaturas idem, estudos (opcional), serviços, sugas e etcétera. Talvez tenha sido justamente o etcétera a preservar nossa integridade física e mental, mas o sono foi também uma parte importante e, muitas vezes, engraçadíssima em nossa rotina.

É verdade que poucos animais no mundo têm a mesma habilidade para dormir em condições tão adversas quanto os alunos da EPCAR. Dormia-se nos alojamentos, nas salas de aula, nos laboratórios, no auditório, sendo que alguns alunos com inclinação para contorcionista dormiam até no diminuto interior de nossos armários, junto com calças e camisas, botas, borzeguins e capacetes.

Alguns abnegados colegas trabalharam num sofisticado sistema que permitiria o aluno dormir até de pé (coisa de deixar cientista alemão boquiaberto), uma espécie de piloto automático de dorminhoco: o corpo adormecido, ao tombar para a esquerda, esbarrava na porta da sala de aula, e o cérebro treinado enviava impulsos para corrigir a posição do dorminhoco.  Esses dorminhocos de teste, como todos os pioneiros, pagaram por sua ousadia com alguns dias de prisão.

No entanto, era difícil dormir no alojamento no horário regulamentar.

Em 70, ocupávamos todos beliches pesadíssimos. Nada, porém, que cinco ou seis alunos fortes e cheios de más intenções não suportassem.

Certa noite, após o toque do silêncio (é claro!), estava entretido contando carneirinhos, quando tive a impressão de ver um beliche se movendo no escuro alojamento. Talvez fosse o sono chegando; talvez, não. Como, naquela altura do ano, já estávamos suficientemente familiarizados com o espírito de alguns colegas, tomei a precaução de erguer-me o necessário para conferir a situação e (importante!) sem ser notado.

De fato, um beliche deslocava-se suave e silenciosamente pelo alojamento. Ora, a segunda lei de Newton e risinhos abafados indicavam que colegas, longe de dormir, tinham  ainda energia suficiente para aprontar mais alguma.

Finalmente, o beliche desapareceu pela porta do banheiro do alojamento da quinta esquadrilha. Corri até lá, e vi que o volumoso móvel (móvel mesmo!) continha ainda o Rosa, naquilo que a Dolores Duran descreveu como paz de crianças dormindo. Embora na rigorosa classificação do Conselho Mundial de Boxe, o Rosa fosse no mínimo um peso meio pesado, ele e seu beliche foram cuidadosamente colocados no corredor de entrada do banheiro e, então, os carregadores, ao mesmo tempo, puseram-se a gritar:

Alvorada! Alvorada!

O Rosa pulou de sua cama e, naquele estado semidesperto,  em que temos dificuldade para entender o básico, estando no banheiro, entendeu menos ainda, pondo-se a correr de um lado para outro totalmente confuso.

Felizmente, entre presos e detidos, salvaram-se todos.

Em 71, desfrutávamos da privacidade das camas individuais, privilégio de veteranos, que, entre outras coisas, nos poupava do nheco-nheco desagradável e suspeito de nosso colega de beliche no ano anterior. As manhãs de domingo, tudo tendo corrido bem na noite anterior, o corpo relaxado, eram, então, o momento adequado para desfrutarmos de uma prorrogação  indolente de nosso sono. Quando isso era possível.

Pois justamente em uma manhã de domingo uma caldeira do rancho explodiu. Deve ter sido uma explosão daquelas, porque até eu acordei. Acordei e vi um monte de colegas numa corrida alucinada em direção à porta. De passagem, alguém me explicou:

Um T-6, fazendo acrobacias a baixa altura, caiu no alojamento do primeiro ano e daqui a pouco cairá aqui. Corra!

Só um sujeito embriagado de sono, que era o meu caso, acreditaria em tamanho disparate. Pulei de minha cama, levei um tombo espetacular, saltei desesperado e me pus a correr sob os gritos de “sai da frente!”.

Do lado de fora do alojamento, soubemos da verdadeira causa do estrondo. Eu, ridiculamente metido em minha ceroula (embora houvesse colega trajando samba-canção) e naquela camisa azul com as asas de ás no peito.

Aquele foi também um ano em que nosso sono da madrugada era sistematicamente interrompido com a entrada no alojamento de silhuetas furtivas retornando de incursões noturnas não autorizadas em áreas não recomendadas, ou seja, tudo aquilo que ao aluno soava como uma ordem: faça!

Já 1972 foi um ano tranqüilo. Claro, se não computarmos um acidental disparo de fuzil, em plena madrugada, efetuado por um colega durante sua ronda. O não dito aluno (não dito até por ser desnecessário, uma vez que o incidente encontra-se registrado na monumental obra As Grandes Cagadas na EPCAR, 1970-1972, entediado com a mais completa falta do que fazer, além de empunhar sua arma para lá e para cá, usando sua imaginação (coisa que jamais faltou a um aluno), transformou as muitas árvores ali perto do H8 em uma multidão de ouvintes enlouquecidos, coisa de fazer inveja aos organizadores do Woodstock, e deu uma de Jimi Hendrix, fazendo o diabo com seu fuzil-guitarra, até dar um tiro, o que quase criou um novo capítulo nos livros de História intitulado o Levante de Barbacena.

Puxa, como era difícil dormir na Escola…à noite.