Férias de BQ
“Nosso cérebro é como um sótão vazio”, ensinava o detetive Sherlock Holmes, “lá só devemos colocar o estritamente necessário ou não encontraremos o que buscamos”. Eu deveria ter levado mais a sério essa ideia do Sherlock, pois, hoje, o meu cérebro é um sótão atulhado de lembranças (a maioria absolutamente inútil!), de modo que, vasculhando pela solução de um problema, encontro umas caixas empoeiradas cheias de fotos de mulher pelada ou um monte de histórias curiosas.
Por exemplo, acredito me lembrar do dia exato em que comecei a pensar em não tentar ser um piloto da esquadrilha da fumaça.
Em 1971, Niterói tinha ainda uma população pequena e concentrada em poucos bairros. Assim, não foi surpresa que em uma noite de janeiro, no meio das nossas mais que merecidas férias, toda a legião de niteroienses da turma de 70, Vilarinho, Moreira e eu, casualmente se encontrasse à saída de um cinema em Icaraí. Após um bate papo, Moreira, morador do bairro, foi para sua casa, enquanto eu e o Vilarinho tivemos de pegar um ônibus. Quando apareceu um circular, corremos para pegá-lo. Aí, o Vilarinho me diz “Entra, Dias”, ao que eu gentilmente retruquei “Não, sobe você primeiro”. “Entra aí, Dias”, “Sobe você” até que, num sincronismo quase impossível, subimos os dois ao mesmo tempo.
Eu deveria ter obedecido ao comando do Vilarinho, mais antigo e mais esperto, mas não. Naquela troca de gentilezas (ou insubordinação), acabamos os dois entalados na porta traseira do veículo, correndo o risco de nos espatifar no asfalto, porque àquela altura o motorista já tinha arrancado com o ônibus, enquanto o Moreira ia ficando para trás, quase morrendo de rir na calçada.
Conclusão: a minha indisciplina poderia ter causado o aniquilamento total da população de niteroienses da turma de 70. Agora imaginem o que aconteceria se algum alucinado dissesse “Não, não, dê ao Dias um Tucano para umas manobrinhas”.
No ano seguinte, a população de niteroienses setenteanos registrou o espetacular acréscimo de 1 (um) colega, o Torres.
Em outra noite, esta fatal para minha aspiração a ás dos céus, estou esperando um ônibus quando escuto “Dias, quer uma carona?”. Lá estava um daqueles jipes sem capota, talvez uma relíquia da segunda guerra, com 75% dos setenteanos niteroienses a bordo, com o Vilarinho ao volante. Eu, o idiota que aceitou aquela carona, representava os outros 25%.
Se fosse hoje, talvez eu nem conseguisse subir naquela geringonça, mas, na época, para demonstrar minha agilidade e ousadia, num instante eu estava a bordo. Nem deu tempo de cumprimentar os colegas, o Vilarinho arrancou já quebrando a barreira do som, pelos menos eu não ouvia uma palavra do que o Moreira me dizia. Procurei onde me segurar, enquanto a voz da razão me sussurrava: “Não olhe. Relaxe!”, de modo que eu não saberia dizer quais manobras o Vilarinho executou; contudo, sei com certeza que, quando ele passou pela rua da praia de Icaraí, eu puxei 4,5C’s (com C mesmo. É a escala em que o máximo é de 5 Cagaços, sendo que, no ponto 5, o sujeito passa do cagaço metafórico ao físico).
No primeiro sinal vermelho, consegui descer do jeep assassino e, apesar dos apelos insistentes dos colegas, terminei o trajeto a pé.
Em outra ocasião, tive o prazer de receber a visita do neguinho Marcondes, que teve de enfrentar uma travessia de barca Rio-Niterói, pois a ponte era ainda um projeto.
Ao retornar para sua casa, depois de experimentar alguma comida e muitas bebidas niteroienses, o ilustre carioca encarou outra travessia.
A noite ia alta, as bebidinhas faziam seu efeito, de modo que, esperando a barca zarpar para o Rio, nosso amigo iniciou um cochilinho ainda em Niterói. Algumas horas depois (a travessia de barca durava uns 20 minutos), ele acorda de seu pequeno descanso e vê a sua frente a mesma estação das barcas de Niterói. Indignado, dirigiu-se ao marinheiro mais próximo.
– Aí, meu camarada, a que horas essa barca sai?
O marujo olhou para ele e suavemente respondeu:
– Ô amigo, a barca já foi e voltou umas três vezes, você estava dormindo…
(publicado no e-Groups em 19-07-2015)