JF-BQ, Sem Pressa

Ali pelos anos 70, só havia dois horários por dia de ônibus na linha BQ-RJ e RJ-BQ. Um saía muito cedo; o outro, muito tarde. De qualquer maneira, o licenciamento ia para as cucuias, a menos que o indivíduo já saísse de casa pronto para um VI.

Uma alternativa era pegar um RJ-JF e depois um JF-BQ. O último horário (dentro do padrão) de JF para BQ era o de 21:30h. O problema com essa linha era o ônibus do tipo parador, e, naquela época, quando tudo era mais devagar e a população bem menor, os motoristas conhecerem cada passageiro e suas famílias. Resultado: era uma viagem enervante, com o ônibus parando em cada caminho do lá vai um que desse na estrada, com um mineirim perdido naquelas lonjuras, pitando seu cigarrim e, naquela escuridão, correndo o risco de ser incomodado pelo cão ou pela mula-sem-cabeça, Deus me livre!

Mas o motorista parava. Parava, abria o bagageiro pro seu Nicanor guardar suas duas malinhas, enquanto a dona Cotinha subia bem devagarinho as escadas do ônibus (ô raio de degraus altos, sô), ainda havia conversa sobre a família, o Zezim, o Dadim, a Ritinha, todo mundo bem? Bem, graças a Deus, vai-se levando. Então, vão bora, gente.

Houve viagem com passageiro levando galinha viva, enrolada em jornal amarradinho com barbante. Galinha inteligentíssima, aliás, foi só a dona mandar que ela ficasse quieta, que ela (a galinha) não fez mais um có-có a viagem inteira.

E, é claro, também chegou a vez do bebum. Este, quando o ônibus parou, provocou um início de revolta nos passageiros seus conhecidos, mas o motorista, investido da autoridade conferida aos comandantes de veículos automotivos, serenou os ânimos com um “que isso, gente”, de modo que, no mesmo tempo em que o Vilarinho nadaria 200 metros borboleta, mais o que o Gonzaga gastaria nos 400 livres, acrescidos daqueles necessários para o Siqueira completar uma meia maratona, e só depois disso, nosso amigo entrou a bordo, detendo-se ainda para um emocionado agradecimento ao motorista, gente fina que, mesmo assim, dispensou os beijos do ébrio passageiro, talvez para evitar o risco de um contato com conteúdo alcoólico, incompatível com sua tarefa.

A essa altura o ônibus já estava mais que lotado e atrasado, decorrência de tantas paradinhas simpáticas, e o bebum não pôde ir além da segunda ou terceira fila de poltronas, ao lado das quais, postou-se de pé, apoiando-se no guarda-volumes acima da cabeça dos que por ali se sentavam, a saber, nós, os alunos da EPCAR, trajando nosso garboso quinto A, sem o paletó (que eu suspeito chamava-se túnica) para evitar amarrotá-lo.

No entanto, o bebum, como todo bebum que se preze, nem tomou conhecimento do ambiente, nem de quem nele estava; passou a falar com ele mesmo, na língua universal dos bebuns, cheia de rrrrr e pppp, até que ele, sabe-se lá como, percebeu que os primeiros elementos sentados nas poltronas do ônibus trajavam camisa de manga comprida azul clara, gravata azul escura, calça azul escura e sapatos pretos, com meias pretas. Demorou só um tiquinho de tempo e ele chegou a suas conclusões, que anunciou com razoável clareza, e consistia na seguinte observação:

– Essa empresa é engraçada! Eu não entendo, mas não entendo mesmo! Passageiro vai em pé; e os motoristas vão sentados. Pode isso?

Aí o motorista verdadeiro vira-se rapidamente para trás, confere a situação, isto é, nos vê, abre um sorriso ladino e, querendo se divertir, bota lenha  na fogueira do bebum. “Mas não é que é verdade, sô”.

O bebum, com o súbito apoio do comandante da nave rodoviária, mandou ver: Vê se tem cabimento! Nós que pagamos viajamos em pé, agora os motoristas, que nãããão pagam, … ééé,  motorista não paga, paga?, num paga, mas aqui ó viaja tudo sentado, no bem bom. Pode isso?

E assim fomos até a rodoviária de BQ, ouvindo as mesmas reclamações, que, no final, já nos faziam rir também.

(publicado no e-Groups em 12-03-2015)