Sulistas

Falam tanto de mal de Alzheimer atualmente, que eu ando preocupadíssimo com a minha capacidade de compreender as coisas.

Por exemplo, o Freitas respondeu a uma mensagem do Luizão reclamando com o Érico não ter entendido o que ele escreveu. (???).

Aí, o Cledi divulgou a mensagem do Érico, da qual eu não entendi absolutamente nada.

O que me salvou da depressão total foi o MAS (grafado assim mesmo) que o Érico usou em sua mensagem e me trouxe a ótima lembrança dos nosso sulistas conversando ou discutindo nos alojamentos da EPCAR.

A primeira informação surpreendente que obtive na Escola foi a de serem o Borges e o Luz gaúchos.  Na minha vasta experiência de rapazola dos anos 60, mal saído de Niterói, todo sulista era descendente de europeu, incluindo aí os índios guaranis.  E não era apenas eu que assim pensava.

Durante o aniversário da Escola, em 1970, os pilotos da Esquadrilha da Fumaça passeavam pela EPCAR, quando o major Braga avistou um grupo de alunos, no qual eu estava, e mudou bruscamente a direção de sua caminhada, embicando direto para nós. Como o Braga era reconhecidamente um excelente piloto, dotado daquele instinto quase extra-sensorial que os grandes aviadores têm de ter, eu humildemente imaginei que ele, ao me ver, notando talvez meu olhar de águia, ou minha postura de falcão-peregrino, tivesse de imediato reconhecido um ás ainda em preparação e que viesse me propor uma vaga na Fumaça. No entanto, ele passou direto por mim, indo até o Wagner:

Você é de Santa Catarina? Perguntou o grande líder.
Não, senhor, sou de São Bernardo.

Santa Catarina, São Bernardo… o que é isso? Catecismo?

Como veem, não era somente eu que tomava sulistas por louros ou os louros por sulistas.

O interessante é que, todas as vezes em que alguém entrava no alojamento  da sexta esquadrilha,  dava de cara com o Borges dedilhando seu violão, e aí vinha a saudação:

Dá-lhe, Jimi!

Respondida sempre com um prolongado auuuuuuuuu.

Enquanto o Luz tocava trompete, o que me levou a uma conclusão mais refinada sobre os sulistas: ou descendem de europeus, ou são músicos. Simples.

Outro erro a que éramos induzidos: todos os sulistas moravam na mesma rua; no máximo, no mesmo bairro. Todos já se conheciam!

Na primeira semana de Escola, quando nenhum de nós se lembrava da localização de seu próprio armário, o Adelarrrrrr passava de uma parte do alojamento para a outra gritando:

Procuro por Adolfo Érico Baungardt! Procuro por Adolfo Érico Baungardt!

Nessas idas e vindas, o Adelarrrr me deixou numa situação vexatória. Era uma daquelas noites de arrumar a trouxa para a lavanderia, me enrolei (Um-oito-zero, meu filho, tá dando chance!) e não conseguia distinguir minhas meias usadas das limpas. Sendo todas pretas e estando misturadas, só tive uma alternativa: cheirá-las, uma a uma.  Então, eu estava lá, mais compenetrado que um cientista testando amostras de um vírus mortal, quando dou de cara com o Topo Gigio parado, me olhando assustado. Interrompi, constrangido, meu experimento, pensei em me explicar, mas ele só me olhou com aquela expressão de quem pega um tarado em flagrante, e acrescentou o eloquente comentário:

Bahhhhhh…..

Com o tempo, fomos nos aproximando daquele povo de fala cantada e curiosa:

Não, mas para aí, negão…
Agora, tu me dizes se eu, por acaso, te perguntei alguma coisa. Não, né? Bah, que peninha…
Ô, barriga verde, dá para tu vires aqui?

Só na turma F havia quatro deles. O Sidou, que em pouco tempo era chamado de Sidã. Tínhamos também o Filter, mas ele, com aquela cara de cearense, era tido como agente duplo, o Sachett, e o Bicas, rebatizado Schmidt.

O Schmidt era a personificação do sulista: olhando sua pele, éramos levados a redefinir nosso conceito de brancura; além de ser um vivente sem medo de endurecer as conjunturas (desculpem, morrer, para o não falante do gauchês). De fato, era tão ousado que uma vez, convidado pelo Ênio, passou um fim de semana no Rio de Janeiro, ali pela primavera, e encarou uma praia numa boa. Segundo o Ênio, numa boa até demais. Debaixo de um sol que não estava fácil, a mãe do anfitrião avisava o visitante para se expor menos aos raios solares. Resposta:

Bah!

Na segunda-feira, após as aulas da manhã, o Schmidt vai para o alojamento e se deita em sua cama, trajando uma cueca samba-canção. Seu corpo estava cheio de bolhas que, só de olhar, nós sentíamos a dor. A muito custo, o gaudério foi para a enfermaria.

Durante as aulas no segundo ano, eu me sentava perto de outro índio velho. O Bira, ou Ubirajara, fumava um mata-rato sem filtro, tão brabo que a ponta de seus dedos já estavam amareladas, mas ainda tinha pulmões para vencer um monte de provas esportivas. Suas histórias e seu gauchês eram de matar de rir. Segundo ele, sua mãe ao mandá-lo comprar café e açúcar (por exemplo), dizia:

Ubirajara, guri, compra o açúcar no Uruguai, está mais em conta.

Na cidade de Jaguarão, terra do Bira, bastava dobrar uma esquina e você estava no Uruguai. Para mim, isso era uma coisa fantástica, quase tanto quanto a sua fala, uma mescla natural do português com o espanhol.

No terceiro ano, percebi que me graduaria com honras em gauchês : dividia o apartamento com o De Oliveira e o Filter, dois falantes nativos. O de Oliveira, no entanto, revelou-se um professor difícil. Começou corrigindo meu português:

Diasssss, eu não me chamo di Oliveira, entendeste? Meu nome é DE Oliveira.

Outro aspecto negativo é que, ao dormir, DE Oliveira roncava tanto que as nossas camas vibravam. (Penso agora que, com essa moda de vibradores, ele deve ser um caso raro de homem que, mesmo dormindo, enlouquece as mulheres). Como ele era meio explosivo, atacávamos, três ou quatro, no escuro,  armados de travesseiros, baixando o sarrafo. Quando ele acordava,  sentava-se na cama e ameaçava a escuridão:

Se eu pego um bisca, um desavergonhado, um cabotino…. bah… que nem vou falar, tchê. Mas, bah, alcachino, capo o desafortunado!
Vejam que riqueza de vocabulário.

 Já o Filter era uma folgança completa. Quando eu comentei com ele que meu estágio inicial de gauchês fora com o Bira, ele criticou:

Bah, mas o Bira fala mais grosso do que pau de tronqueira.
Como é, Filter?
É, mais grosso do que dedo destroncado. O Bira é lá das fronteiras, tu tens que aprender um gauchês correto, mais claro.
Ahhh.

O único problema do grande Filter era outro gaúcho. Um tipo taludo, desempenado e de bigodelha. Os dois se detestavam.

Não sei se ainda se lembram daquelas conversas de última hora no cinema, sempre às sextas-feiras, após a instrução militar e pouco antes de começar o licenciamento? Ótimas, não?

Uma vez, espalhou-se num boca a boca pelo auditório a ordem para ninguém fazer qualquer pergunta após a palestra. E aí nosso comandante mandou ver o falatório. Até que, lá pelas tantas, ele parou e tascou:

Alguma pergunta?

Um incauto colega levantou-se para formular sua pergunta. Vi o Filter, exímio lançador de bodoque, atirar o que me pareceu ser seu bibico em direção ao colega, que, atingido em cheio, caiu. Foi então que soube ser o míssil do Filter um dos seus borzeguins.

Já no apartamento, o Filter extravasou sua fúria:

Bah, mas que idiota! Não, para aí, é um completo babac….

Nisso, a porta do banheiro do apartamento é aberta por ninguém mais, ninguém menos do que….

Apartamento, sentido! O próprio Filter comandou.

E, então, ficaram os dois viventes se mirando durante uma eternidade, como em um duelo de filme de faroeste. Ninguém se mexeu, ninguém piscou nem mesmo respirou, que era peleia entre sulistas, negão, bahhhhh.

(publicado no e-Groups em 18-03-20158)