Nosso amigo Milicão

por 70-180 Dias

(publicado no e-groups em 16/05/2017)
Sei de colegas que costumam contar aos seus netinhos e netinhas que, durante seu tempo de EPCAR, jamais dormitaram fora de hora.   Um parêntese:  agora na turma de 70, só teremos vovôs, com exceção de uns candidatos a super-herói, aqueles para quem o tempo não passa e a gravidade (aquela força desagradável que puxa tudo para baixo) não existe.  É a vida!
Bom, todo mundo sabe que os vovôs foram feitos para contar histórias fabulosas para a prole de sua prole. Se você é vovô e ainda não teve a oportunidade de exercitar essa faculdade, aguarde, você há de se pegar, em breve, assim:

– No meu tempo de Escola, ah, todo dia eu acordava antes dos galos, assistia a oito aulas, todo dia fazia ginástica, instrução militar, tirava serviço, levava roupa na lavanderia, à noite ainda ia até a cidade e…

– Mas, vovô, não era proibido sair da Escola durante a semana?

– Era, mas havia umas instruções táticas noturnas, o VI, voo por instrumentos.

– Ué, você já era piloto na Escola?

– Ainda não. Isso era um código para uma ação secreta nas zonas, quero dizer, nas regiões perigosas da cidade. Coisa de militar.

– Você usava arma, vovô?

– Não, não, era combate corpo a corpo. Delicioso… Terrível, terrível!

Agora, vovô, dizer que nunca tirou um cochilinho durante uma aula, ou numa palestra no auditório, ou durante um daqueles filmes de física, peraí, não fica bem para um sujeito que já tem direito a passe livre em ônibus e não precisa entrar em fila nos bancos (e numa pelada, quando ainda aguenta uma pelada, qualquer que seja a pelada, fica sempre no time dos cotonetes, quando ainda tem cabelo). Não sei quanto ao resto, mas, afirmar que nunca dormiu durante um filme nas aulas de física, meu camarada, é uma mentira descarada!
Tudo bem, você viu aquele mostrando as asas de um beija-flor batendo lentamente, outro em que uma bala de revólver atravessava um balão antes dele estourar, até aí eu também estava acordado, mas (pense bem antes de responder…) e aquele sobre a experiência do Millikan? Quem? Sei, sei, você dormiu do começo ao fim do filme e, agora, diz que não se lembra.
O filme é aquele sobre a descoberta da carga elétrica fundamental. Mais ação do que isso, só em filme do James Bond: caía uma gota de óleo eletrizada, caía a segunda gota eletrizada, caía a terceira gota zzzzz. E todo esse espetáculo se deu numa sala com as luzes apagadas (depois de uma noite tirando serviço ou num corpo a corpo secreto na cidade…), numa tela pequenininha, escura, com um projetor fazendo um vruuumm-vruuuummm hipnótico. Quando o filme acabou, a turma parecia um grupo de iogues em meditação profunda. Após a segunda alvorada do dia (quem acordava dava uma cotovelada no dorminhoco ao seu lado), um colega, em vez de voltar para a sala de aula, encaminhou-se para o alojamento: ia escovar os dentes e mudar o uniforme. O retorno à realidade foi demais para ele, coitado.  Outro (sulista meio exaltado) comentou alto “pessoallllll, para semana que vem, o uniforme para o filme de física é o sexto interno com travesseiro”, quase levando a turma inteira ao pelotão de presos naquela semana.
Outro parêntese: o ato de dormir durante uma aula, qualquer aula, produziu alguns dos mais belos episódios da história epcariana. Um colega, apanhado dormindo em sua carteira, foi mandando pelo professor para o fundo da sala, onde teria de permanecer até o fim da aula. Tenho a impressão de que a ideia do professor era obrigar o colega a ficar acordado o resto da aula. Veja que ingenuidade! Como se ficar de pé fosse impedimento para um aluno dormir. O colega não só dormiu novamente, como deu um show: apoiou-se na porta, à qual aplicou uma força F, fazendo-a girar sobre seu eixo (um torque tau) e BUM, fechou-a com um estrondo do cacete e caiu no chão. A qualidade do espetáculo foi reconhecida até pelo comando da Escola. O colega recebeu uma magnífica saudação em boletim, naquela famosa quarta parte, justiça e disciplina. Fecha parênteses.
Mas o Millikan, o das gotas eletrizadas, pagou um preço alto.
Diariamente, colegas anônimos, criativos e dedicados, trabalhando como verdadeiros profetas, inventando aqui, alterando ali, mentindo acolá, criaram o famoso Milicão, um ex-aluno extremamente rigoroso, cuja gloriosa biografia encontra-se registrada no tomo XXV da colossal obra “Pagações de mistérios, audiências e desculpas esfarrapadas epcarianas: 1970-1972”.
Consta que, certa alvorada, ao entrar no banheiro da quinta esquadrilha para escovar os dentes, Milicão se olhou no espelho e não acreditou no que viu. Passou a mão pelo próprio rosto e se perguntou (em voz alta): barba por fazer, Milicão? Sem ponderação, aluno: 4D!4D!
A história termina com o triste fim de Milicão, acometido de mal desconhecido e que, mesmo tendo sido prontamente medicado com dois comprimidos de AAS na enfermaria da Escola, teve de ser levado ao isolamento.  Chegou lá queimado em febre, e, quando alguém lhe perguntou como ele se sentia, ouviu dele:

– Frio, muito frio. Tenho de me COOO-BRIRRRRR

Chamaram seu pai, que só conseguiu chegar a tempo em BQ porque foi de cometa, da Viação Cometa, empresa em que trabalhava aquele menino, o Fittipaldi, que conseguiu encurtar a viagem, pegando um atalho até Santos Dumont, local de onde o pai do Milicão decolou do T-33 que ficava num pedestal, saltando de paraquedas no pátio da bandeira.
O encontro entre pai e filho foi de partir o coração: ao ver seu pai, Milicão disse suas últimas palavras: sei que o senhor ficará SEEEENNN-TIDO, mas irei DESCANNNN-SSAAARRRR. E pediu desligamento deste planeta.
Ao atingir seu estágio avançado, local onde todos recebemos o brevê nas costas, Milicão foi reconhecido por ex-alunos que explicaram seu comportamento detalhista na Terra ao comandante da Legião, e este o colocou como responsável pelas chuvas.
E é isso. Cada chuva que cai, tem o Milicão por trás, soltando a primeira gota, a segunda gota, a terceira zzzz. Deve ser por isso que tanta gente gosta de tirar um cochilo ouvindo a chuva cair.