Dois Termos Epcarianos

por 70-180 Dias

(publicado no e-groups em 20/02/2017)
Até hoje, quando me dizem que um sujeito é um pentelho, não penso em uma pessoa inconveniente, um chato. Pentelho ainda me lembra alguém correndo, esbaforido, chegando no pátio da bandeira no último momento para a formatura do almoço, com seu sexto interno impecável, não faltasse a gravata.  E, nesse momento, o colega arregala os olhos e lembra de tê-la deixado, com nó e tudo, em cima da cama, lá no alojamento, para onde ele dispara, seguido de uma avalanche de rrrr: rá, meu filho, tá enrrrrrolado outra vez!
Pentelho era o sujeito que dedicava a seu armário o máximo cuidado.  Máximo aí significa que inclusive a chave do cadeado era guardada dentro do armário e, depois, o cadeado fechado.  Havia, na sexta esquadrilha, um pentelho tão consciente de sua compulsão enrolativa que mantinha uma chave de fenda no alto de seu armário para o caso de uma emergência, coisa que acontecia com tanta frequência que perdeu o status de emergência e tornou-se corriqueira.
Lembro de uma encabelação espetacular.  Era uma quinta-feira, dia de paradão.  Nosso colega (é outro. Muitos eram os pentelhos e grandes, suas empentelhações!) trajava um quinto A digno das melhores passarelas do mundo da alta moda e estava nos últimos retoques no seu ray-ban (tirava um átomo de poeira da lente esquerda).  Quando terminou, saiu do alojamento num caminhar que acompanhava o “Vamos, filho altivo dos ares” executado em sua imaginação, só para ele, o filho altivo.  No pátio da bandeira, foi o alvo das atenções.  Claro, era o único sem o quepe!
Portanto, para mim, o fulano pentelho, de chato, não tinha nada: era o fulanelho, que só fazia nos divertir.
(O uso do óculos ray-ban merece um comentariozinho: havia uns modelos cor de buraco negro que seriam cobiçados pelo Steve Wonder, de modo que, se algum desavisado visitasse a Escola num daqueles paradões, levaria um susto ao ver tantos alunos com problemas visuais numa escola preparatória de pilotos. Encontrando-se com um daqueles alunos fotógrafos de paradões, perguntaria com discrição “Os ceguinhos, também pilotam?”. Como nunca houve aluno que deixasse pergunta sem resposta, alguns excedendo-se nos mistérios, o visitante ouviria mais ou menos o seguinte: Sem problemas! Aqui, meu amigo, voa-se por instrumentos ou no visual. Se não tem visual, voa-se em Braille!)
Outro termo que não me convence é golpe.  E olha que tem sido empregado à beça atualmente.
Para mim, golpe é um aluno avisar que vai “passar mal” durante uma formatura, começar a sofrer um desmaio (desmaio diferente, em etapas, para não correr o risco de cair de cara no chão, como uma vez ocorreu, e não foi golpe) e, ajudado por cinco ou seis colegas, quatro segurando um membro (no bom sentido) cada um, outro sustentando a cabeça do acometido de mal súbito e o sexto pedindo licença para conduzir o moribundo à enfermaria. E mais, uma coisa impressionante a ligação entre esses alunos, a preocupação, tamanha, que ninguém arredava pé da enfermaria até a plena recuperação do sinistrado, que, em geral, ocorria, coincidentemente, ao final do desfile do Corpo de Alunos.
O problema do golpe era quando ele vinha acompanhado do outro termo: empetelhação!
No nosso segundo ano, alguns colegas, que poderiam facilmente desempregar todos os contorcionistas chineses do Cirque du Soleil, criaram um golpe espetacular: durante a formatura do almoço, o homem de borracha ficava trancado no interior de seu armário. Alguém irá dizer: ah, mais isso não tem nada demais.  Não!  Junto com quinto A, sexto interno, décimo pendurados, borzeguins, botas, capacete, cuecas, meias, lenços, e mais uns itens exóticos: meio abacate, bananas, fatias de queijo prato, pacote de açúcar, leite condensado, aquele produto que parecia mel.  Como não tem nada demais?  Tinha coisa demais ali dentro!  Muito bem.  O homem-mola ficava em seu armário, trancado por fora com o cadeado (caso alguém fizesse uma revista no alojamento, etc, etc), durante, sei lá, meia-hora, quarenta minutos, com uma cota mínima de oxigênio (cá pra nós, um sujeito desses poderia ser enviado a Marte num quitinete com apenas um pequeno tratamento térmico externo). Quando acabava a formatura, o segundo elemento do golpe (vejam a complexidade do negócio) voltava para abrir o armário.
No entanto, houve uma ocasião em que o piloto de armário sofreu um surto de pânico, ou foi um caso de fobia não detectado na inspeção de saúde, de modo que o armarionauta (que depois afirmou ter tido uma vontade incontrolável de ir ao banheiro) se pôs a chamar alguém que ele ouvira andando pelo alojamento. O problema é que o alguém não era propriamente um colega e ficou aguardado a chegado do copiloto de golpe para aplicar à dupla um número de Ps cuja soma foi a dois dígitos, inflacionando perigosamente o pregão do pelotão de presos.
Como essas peripécias e suas consequências eram narradas em alto e bom som, diariamente, na quarta parte do boletim, seus desfechos deveriam ser suficientes para sossegar o facho de qualquer golpista. Seriam, de fato, não fosse ele um aluno.
O aluno golpista além de ingênuo, nutria um profundo desprezo pela logística, superestimando sua capacidade de improviso, que, a bem da verdade, era uma coisa impressionante.
Pois bem, houve um dia em que um grupo de alunos (entre os quais, esta alma de aluno pecador), ali pelas onze e pouca da manhã, encontrava-se atrás da lavanderia da Escola.  Naquele dia, naquela hora, eles (nós) não deveriam (amos) estar ali, mas estavam (mos). Uns fumavam um cigarrinho, outros pegavam um solzinho; a conversa fluía agradavelmente, até que (olha o resultado da falta de um serviço de inteligência) uma das moças que trabalhavam na lavanderia apareceu numa das portas, toda sem jeito, coitada, como se ela estivesse fazendo algo errado, e mineiramente perguntou afirmando ou afirmou perguntando:

– Ocês estão matando a formatura…

Houve aquela hesitação típica dos filósofos e, principalmente, dos golpistas (um golpista nunca responde, ali, na bucha, e, se necessário, nega sua própria existência), até que alguém respondeu com um “Ééééé….”. Então, a moça, serenamente, nos revelou sua singela informação:

– É que o brigadeiro está aqui na lavanderia!

Pois é. Quando vejo aquele menino, o Bolt, correndo para ganhar seu ouro olímpico, imagino, até com uma certa pena dele, seu fiasco se estivesse naquela manhã, atrás da lavanderia da Escola.