Noturno Epcariano, 1970
por 70-180 Dias
Um estranho fenômeno ocorria todas as noites na EPCAR; no exato momento em que o corneteiro executava o silêncio, e enquanto as luzes da Escola iam-se apagando, os alunos nos alojamentos iam ficando acesos. A agitação oferecia de tudo: uma versão livre do francês glossoteca surgia nas trevas do alojamento como um uivo:
– Où est M. Thibau? …… Où est M. Thibau?
– Qu’est-ce que c’est, filhô da putá?
– Ah, voilà M. Thibau!
Daí, a coisa podia mudar para a mecânica aplicada ao lançamento de projéteis terríveis, as bombas d’água, ou para a impressionante demonstração da combustão dos gases intestinais, uma encagaçante chama poderosa rasgando a escuridão do alojamento. Só vi coisa parecida muito tempo depois, naqueles filmes sobre aviões usando a pós-combustão. Se o colega continuasse suas pesquisas gasosas, a NASA e a Rolls Royce teriam de se dedicar a outras atividades; um foguete impulsionado por aqueles gases iria a Marte com a mesma facilidade que se vai de BQ a Conselheiro Lafaiete.
Encerrado o show tecnológico, era a vez de um Brasil mais rural. Lá do fundo da quinta esquadrilha, vinha um longo assobio que enlouquecia um peru. Aquela torrente de glu-glu-glus, por sua vez, despertava cachorros, galinhas, porcos e outros. O imitador de peru era um virtuose: tinha-se a impressão de que, a qualquer momento, um peru iria passar correndo loucamente por entre os beliches.
Histórias como as dos alojamentos, difícil ouvir igual. Foi lá que eu soube que a expressão “bêbado como um gambá” vem do fato de os gambás, exatamente como muitos humanos, adorarem uma cachacinha, razão pela qual a mãe de um colega foi comprar, em uma vendinha, um copo de caninha para dar um jeito num raio de um gambazinho ladrão (oi, se num é história de minerim!). No dia seguinte, tava lá a tigela vazia, mas cadê o bicho? Aí, a mãe volta na vendinha e explica o problema.
– Mas a senhora tem de botar é um litro de cachaça. Gambá bebe, mas bebe é muito; um copinho faz efeito não, dona!
Na mesma noite, puseram um litrão de pinga pro desgraçado, que mais tarde foi visto trocando as patas pela ruela. Morreu, não, tadim, ficaram com pena do pinguço.
Uma missão difícil era os plantões colocarem ordem nos alojamentos das 22 às 23 horas. Daí em diante, o problema era acordar naqueles horários simpáticos, no meio da madrugada.
Por exemplo, uma vez, embora o meu plantão começasse às 3 horas, lá pelas duas e meia, o colega que eu iria substituir já estava me acordando, “para que eu mudasse a minha roupa sem pressa”. Meia hora para colocar o sexto interno por cima da cueca e uma camiseta é tempo pra burro, mas, naquela vez, me pareceu uma delicadeza comovente do colega. Só comecei a estranhar quando o procurei e não o encontrei, de pé, naquela parte do alojamento; só fui achá-lo em sua cama, já roncando.
O serviço de plantão, ao contrário do que parecia, ficar naquela escuridão ouvindo roncos e outros ruídos noturnos ainda menos agradáveis, poderia ser muito instrutivo. Por exemplo, eu não sabia que o ser humano, ou melhor, alguns seres humanos são capazes de manter uma conversa normalmente enquanto dormem; e ouvir e encher de perguntas um dorminhoco falante era uma diversão que consumia um bom tempo do serviço do plantão. Havia colegas capazes de liquidar uma dúvida sua em qualquer assunto sem sequer mudar sua posição no beliche. Aquilo era engraçado, mas dava um certo medo; a enciclopédia adormecida, um tranquilíssimo colega durante o dia, ao cair no sono, parecia um oráculo em transe. Oráculo é o cacete! O cara virava um Google antes de o Google ter sido criado.
Infelizmente, havia também aqueles que receberam treinamento de ninjas, sendo capazes de caminhar sobre folhas secas de árvores sem produzir qualquer som. Esses cretinos levantavam-se alta madrugada para ir ao banheiro e, na volta, aproximavam-se pela sua retaguarda e, quase dentro de seu ouvido, sussurravam alto: PLANTÃO! Como se já não bastasse o susto de repentinamente você vislumbrar uma aparição espectral, de ceroula, camiseta e descabelada, desaparecer na semiescuridão do banheiro da sexta esquadrilha.
Mas o verdadeiro problema do plantão eram os diabólicos alunos de dia, seres nos quais, mais dia, menos dia, iríamos nos transformar. Certa noite, um colega de plantão veio me contar, ainda trêmulo, sua experiência. “Aí me aparece, do nada, o aluno de dia e começa a me encher de perguntas. ”
– E aí, plantão, como está o serviço?
– Sem alterações.
– O alojamento está tranquilo?
– Sim, tudo tranquilo.
“E continuou o interrogatório. Eu, com um sono danado, não conseguia pensar direito nas respostas e já estava pronto para mandar o cretino à merda, imagina!, então, de repente, entrou uma claridade no alojamento, coisa rápida, nem sei de onde veio a luz, e eu vi que o sujeito usava bigode. Então eu pensei: ôpa, alunos de dia não usam bigode; logo, eu não estava diante de um aluno de dia; era o oficial de dia! E eu quase o mandei à merda.”
Uma pena eu ter ouvido esse relato no meio da madrugada e no escuro do alojamento. Nunca mais tive a oportunidade de, ao vivo, ver nascer e ser desenvolvido um argumento tão bem construído. Aquele plantão era um Descartes!
Então, vi que eram três e meia. Fui acordar meu substituto. O colega acordou num mau humor infernal e foi logo me perguntando as horas.
– Quê! Volte daqui a meia hora, cara!
Eu, esperto, já escolado, fiz a minha tentativa:
– Mas é para você trocar sua roupa sem pressa.
– Dias, qualquer IMBECIL coloca o sexto interno em dois minutos.
Bom, era mais ou menos esse o processo que, no lento passar dos dias, mas de maneira muito eficiente, transformava bichos em veteranos.